Sérgio Ricardo: 'A ditadura deixou o medo de transformação como herança'


Prestes a completar 80 anos, em 18 de junho, o cantor e compositor Sérgio Ricardo nasceu em Marília (SP) e tornou-se um dos mais importantes nomes da música brasileira. Instalado no Rio de Janeiro em 1952, ele fez parte do primeiro núcleo de compositores da Bossa Nova e participou do famoso concerto de Bossa Nova do Carnegie Hall, em Nova York, em 1962.

Sérgio Ricardo também ficou famoso por criar músicas com forte temática social e de protesto, caso de “Zelão”, e compor a trilha musical de peças teatrais e filmes, como “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna; e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” e “Terra em Transe”, todos de Glauber Rocha. Em 1967, sua música “Beto Bom de Bola” levou uma vaia tão estrondosa no II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, que ele quebrou o violão no palco e o atirou na plateia.

Como boa parte dos compositores e cantores da música brasileira, Sérgio Ricardo não escapou da truculenta censura federal. “A minha relação com ela foi sempre a pior possível. Eu vivia sendo chamado para explicar letra de música e prestar depoimento, como se isso fosse transformar alguma coisa ou fazer uma guerra”, relata. “Levei uma pobre produtora de disco quase à falência, porque retiraram das bancas o meu disco ‘Aleluia’, do qual ela tinha feito uma grande tiragem. Foi um projeto que eu fiz em homenagem ao (Che) Guevara, um grande herói internacional que foi assassinado. Ninguém sabe que música é essa. Até hoje não existe forma de poder botá-la no ar, também porque o assunto envelheceu. A história se incumbiu de fazer esquecimentos por aí”, lamenta.

Resistindo de todas as maneiras, Sérgio Ricardo ficou 20 anos sem gravar, entre 1980 e 2000. Seu trabalho mais recente é “Ponto de Partida”, registrado entre setembro de 2007 e fevereiro de 2008, e lançado pela gravadora Biscoito Fino. “A principal herança que me deixaram foi o esquecimento. Foi aquela coisa de me proibirem de tocar no rádio e na televisão, e de aparecer nos meios de comunicação. Acabaram me transformando num desconhecido. Eu não estou aqui à procura de sucesso nem de glória. Mas acho que foi injusto o que aconteceu comigo.”

O compositor acrescenta: “Não interessa a injustiça feita comigo. O que importa é o Brasil no setor cultural, tanto no teatro como no cinema, na televisão e no rádio. Uma coisa cruel, que se desenvolveu durante a ditadura, foi o jabá. A cultura brasileira só acontece através do jabá. Se pagou, você é tocado no rádio e aparece na televisão. Essa distorção dos valores aniquilou com a alma brasileira. Você não ouve mais choro, serenata e um canto de amor. Só ouve um rock desesperado e agônico. O próprio samba, que era tudo o que poderíamos ter de tradição a ser conservada, está sendo esfacelado. Aos 80 anos, ver uma realidade brasileira dessa natureza dá uma tristeza enorme em quem faz arte neste país”. 

Leia a entrevista completa.

Você acredita que ainda há reflexos do regime militar no Brasil? Nós conseguimos superar todos os fantasmas daquele período?

Eu acho que os fantasmas ainda existem. Não foram superados inteiramente e talvez tenha sido essa a razão da interrupção do processo anterior, porque, no momento em que se constatou que já estava conquistada a desesperança de uma mudança, a força resolveu ceder lugar aos novos dirigentes do país. Eu percebo que ficou instaurado um medo no povo brasileiro de uma tentativa de transformação. Ficou mesmo estabelecido que o perigo está à volta. Então todos passaram a ter medo de uma reviravolta e das reivindicações que o Brasil precisava ter utilizado para transformar a realidade e que não foram levadas a efeito.

O país teve uma série de problemas, como a falta de atitudes políticas e reivindicatórias de classe, e a cultura brasileira, que naufragou. Naturalmente, alguns deles foram resolvidos no governo do Lula, um pouco mais tarde. Mas os outros continuam existindo. A cultura, que é meu terreno pessoal, é o setor mais abandonado neste momento. Parece que se quer descer ao nível da miséria do povo brasileiro. Ela chegou a um momento em que não se tem mais perspectivas de melhora. Já se instaurou uma debandada dos princípios e das raízes brasileiras. A forma com que se produzia cultura no país acabou por completo. Eu não fico com tanta radicalidade de que estejamos no fim, mas a falta de reivindicação da própria classe cultural já demonstra que esse medo deixado pela ditadura permanece na nossa realidade.

Houve projetos inovadores e importantes que foram abortados em função do regime militar?

Acabou a censura, porque não há mais o que censurar. Não se está fazendo nada que, pelo menos, indicasse a necessidade de uma censura, porque a nossa realidade ficou amorfa. Ninguém luta por nada. Eu não gostaria de generalizar, porque há muitos setores que estão se movimentando, mas num nível muito modesto. Não ao nível de uma verdadeira reivindicação transformadora, mas, sim, de uma queixa. O que existe são queixas e poucos líderes transformando as coisas. Lideranças com consciência de classe. A classe cultural, por exemplo, está abandonada. Não se vê reuniões da classe querendo transformar alguma coisa. Só se vê todo mundo tentando se ajustar aos moldes que foram lançados como participação do governo na produção cultural, que é uma coisa que está inteiramente furada.

A produção cultural no país, neste momento, é falha e completamente desvinculada da alma brasileira. Na música, virou uma coisa americana e inglesa. Virou cópia de outros países. O sistema de comunicação está escravo de um sistema inteiramente apodrecido e em decadência no mundo inteiro. O mundo não está podendo mais suportar o declínio desse capitalismo selvagem que está por aí e já está perdendo todas as vestimentas. Não se cobre mais nada. O corpo está difuso e só falta dar o tiro de misericórdia. É o que está faltando para que a gente mude o sistema no mundo inteiro. Em decorrência, principalmente no Brasil, de um amedrontamento que foi solto no ar pela própria tradição da ditadura. Está difícil de a gente conciliar os interesses gerais numa luta reivindicatória que possa transformar alguma coisa.

Há um medo que você percebe na nova geração de uma coisa que não existe mais. Parece que existe uma repressão à espera de alguma rebeldia qualquer para poder torturar, prender, matar, transferir para outro país, fazer o diabo. Ou seja, esse tipo de coisa que ficou na memória do povo brasileiro, dessa tristeza que foram os anos de chumbo, da ditadura, virou algo da cultura brasileira, de repente. É algo que precisa ser destruído imediatamente. 

Quais são as lembranças que você tem desse período?

As piores possíveis. Eu assisti durante toda a ditadura a decadência e destruição dos valores brasileiros, lentamente. Os melhores professores foram embora do país. O pensamento brasileiro, a transformação que estava na cabeça de todos e a revolução que se estava fazendo no sentido de salvar o país foi por água abaixo. Isso eu fui verificando durante todo o momento da ditadura, em todos os estandes dela. A cultura, principalmente, que é a alma do povo, ficou prejudicada da forma mais escrachada possível. Tudo que se faz no país está sem a alma que deveria estar presente e é falsa. Estamos vivendo uma farsa de um país desenvolvido, que, na verdade, não tem desenvolvimento algum. É algo etéreo, mentiroso, com muitas coisas fantasiadas pela imprensa, pelo sistema de comunicação e pela chamada intelligentsia, que não tem mais quase nada.

 Como era sua relação com a censura?

A minha relação com a censura foi sempre a pior possível. Eu vivia sendo chamado para explicar letra de música e prestar depoimento, como se isso fosse transformar alguma coisa ou fazer uma guerra. Não fez coisa alguma. Levei uma pobre produtora de disco quase à falência, porque retiraram o meu disco “Aleluia” das bancas, do qual ela tinha feito uma grande tiragem, recolheram e jogaram tudo fora. Sei lá o que fizeram. Foi um projeto que eu fiz em homenagem ao (Che) Guevara, um grande herói internacional que foi assassinado. Ninguém sabe que música é essa. Até hoje não existe forma de poder botar essa música no ar, também porque o assunto já envelheceu por si só. A história se incumbiu de fazer esquecimentos por aí. Além de tudo, a principal herança que me deixaram foi o esquecimento. Foi aquela coisa de me proibirem de tocar no rádio, na televisão, e de aparecer nos meios de comunicação. Acabaram me transformando num desconhecido. Eu não estou aqui à procura de sucesso, nem de glória. Mas acho que foi injusto o que aconteceu comigo.

Não interessa a injustiça feita a meu respeito. O que importa é o Brasil, que está no caos no setor cultural, tanto no teatro como no cinema, na televisão e no rádio. Uma coisa cruel, que se desenvolveu durante a ditadura, foi o jabá. A cultura brasileira só acontece através do jabá. Se pagou, você é tocado no rádio e aparece na televisão. Essa distorção dos valores aniquilou com a alma brasileira. Você não ouve mais choro, serenata, um canto de amor. Só ouve um rock desesperado e agônico, e esses bate-bocas que não levam a nada. Músicas terríveis, péssimas. O próprio samba, que era tudo o que poderíamos ter de tradição a ser conservada, está sendo esfacelado. É terrível. Aos 80 anos, ver uma realidade brasileira dessa natureza dá uma tristeza enorme para quem faz arte neste país.

Também havia muita autocensura na época do regime militar?

É lógico. Principalmente pelos escravos do sistema. Os meios de comunicação, por exemplo, faziam autocensura para não ser prejudicados. Imagine você receber da Kolynos uma grana pretíssima para poder produzir um programa e depois aparecer um sujeito que fosse falar contra o regime. Eles seriam censurados e perderiam a grana toda. Quer dizer, tudo gira em torno do dinheiro. O sistema está pobre e caindo pelas tabelas. Eu estou ficando velho para botar panos quentes nas coisas. O problema todo é essa porcaria desse capitalismo que não quer ir embora. 

 Há saídas?

Há milhões de saídas. É só acabar com essa porcaria. Vamos inventar outro regime, meu Deus do céu. Não é possível que não exista uma solução para esse tipo de problema. Os poderosos não deixam. Os donos do dinheiro não vão permitir. Vão jogar bomba atômica e o mundo vai acabar. Pronto. É isso o que vai acontecer. Eu não sou Pitonisa para descobrir o que vai ser. O que acontece é que não há mais condições de ficar falando em meio termo. Hoje, você tem de abrir a boca e dizer a verdade, porque é impossível conversar com quem quer que seja. Eu não vou declinar aqui a minha indignação diante de qualquer sistema de comunicação que me venha entrevistar. Eu estou dizendo aquilo que acho o que é verdade e fim de papo. Essa porcaria não tem mais como funcionar. Está precisando de uma reforma geral. O Brasil está precisando de um retrocesso. É melhor começarmos de Pedro Álvares Cabral de novo. 

Como você recebe a notícia de que os militares comemoraram o golpe?

 Aqui se faz festa para tudo. Quem está no poder faz festa. Só não tem festa para miserável. Eu queria ver qual é o dia do favelado, que poderíamos comemorar com champanhe e com o país inteiro abrindo mão de seus lucrozinhos para poder fazer uma transformação na favela do Brasil. Isso é o que me interessa. Saber que militar vai fazer comemoração de uma porcaria daquelas, para mim, não quer dizer nada. Eu recebo como um insulto, inclusive por ter sempre um sistema de comunicação dando essa porcaria. Isso não é coisa que se faça. O próprio Exército poderia fazer uma autocrítica e saber que aquela não é a condução certa. E lá dentro eu tenho certeza que tem gente que entende que isso não é coisa que se faça, comemorar uma farsa e uma entrega do país ao império econômico. Aquilo foi uma coisa indigna que o Brasil teve de viver e que agora esquecem para poder comemorar. Isso é uma indignação.



Fonte: Núcleo Frei Tito

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