Do Fato e a História: “500 anos em 5 segundos”


Há de se fazer algumas ressalvas. Longe de defender o comportamento de Patrícia Moreira - a torcedora do Grêmio que ganhou fama nacional negativamente - temos que considerar alguns elementos que permeiam a nossa sociedade que nos influenciam e influenciamos reciprocamente. Uma dessas influências vem da mídia, que longe de controlar mecanicamente nossos pensamentos, de fato influi diariamente ao estreitar as pautas no noticiário. Outra é o aspecto irracional que aflora em espaços como o estádio de futebol.

Não é apenas a Patrícia, nem apenas o Grêmio. Favor não
generalizar a situação. 
Não me lembro exatamente quem disse isso, mas lembro de uma socióloga ou psicóloga (não lembro onde vi) dizer que o estádio de futebol é o “teatro dos pobres”. Lá vivenciamos emoções variadíssimas, expectativa, tensão, angústia, euforia, paixão, raiva, etc. O nosso lado irracional, responsável pelas nossas emoções, é quem dá o tom de nosso comportamento. Neste ambiente de pura efervescência, nossas ações estão condicionadas a uma psicologia social que está ligada a signos de construção, que nos afirmam e de desconstrução, que tem como objetivo desconstruir o outro. Identificando o outro como um inimigo em potencial (no caso o time adversário) cabe à massa elencar características negativas ao outro, levando-nos a atitudes que costumeiramente são condenáveis em locais de convívio mais ameno e amistoso. 

As atitudes que vimos na Arena do Grêmio e indignou boa parte dos brasileiros, podem ser classificada na mesma categoria do surto de “justiçamentos” ocorridos no início do ano no Brasil, onde o que deu o tom a violência exacerbada foi o instinto coletivo canalizados em desinformações que potencializaram o ódio.

Muito distante de defender Patrícia e os demais racistas do estádio e tampouco querendo fazer chacotas e distribuir palavras agressivas com sua pessoa (para isso a psicologia social já agiu muito bem nas redes sociais) temos que focar o problema em e analisar todos os fenômenos que o interligam, entretanto, há de se fazer com que ela e os demais prestem contas ao que fizeram. De maneira correta e serena. E isso foge de nosso alcance, agora esse papel é da justiça e cabe a ela decidir a respeito do caso. A nós, só resta assistir para onde essa situação vai evoluir. Afinal injúria racial é crime previsto no Artigo 140 parágrafo 3º de nosso Código Penal.

Sabemos que a justiça é mais rápida para condenar quem não detém poder econômico e minorias sociais. Dentre várias pessoas que poderiam ser flagradas, porque apenas uma foi noticiada? É importante lembrar que foi a atitude de Aranha ao indignar-se com a situação foi que fez com que a notícia acontecesse e este solicitava que se gravassem os torcedores que estavam ofendendo-o. Apesar de sucessivos casos de racismo, a forma como se noticia cada um deles, busca isolá-los. Isolou-se o caso de Tinga no Peru, o de Márcio Chagas de Freitas (esse pelo menos o clube prestou contas na justiça desportiva) e o de Daniel Alves, este último inclusive com uma campanha publicitária pseudo-social absurda. Isola-se agora Patrícia como um extraterrestre do restante da torcida e, principalmente, das instituições que lucram com o futebol e não macular o espetáculo com questões sociais. Ao reduzir a notícia ao evento isolado, turva-se a situação para preservar os clubes de futebol, a CBF, e as próprias emissoras de Rádio e TV. A partir daí a notícia não é mais o racismo, mas sua demissão do trabalho, as repercussões negativas em sua vida e, principalmente, a sensação de que a justiça foi feita antecipadamente culpando o sujeito e não procurando promover ações que erradiquem a causa. Afinal o espetáculo (e o lucro) não pode parar.

Agora muito mais que cometer um crime, Patrícia e os demais ainda não identificados ou expostos ao grande público, reproduziram um elemento que é naturalizado em nossa sociedade: a animalização do negro, do afrodescendente e suas variações. Não é incrível que certos comportamentos continuem e provavelmente continuarão atemporais em nossa sociedade? Os signos do negro como uma sub-raça, inapta e deformada moralmente, animalesca em contraponto como virtuoso europeu branco dotado de inteligência infinita e capaz de conduzir o mundo, ainda é muito presente em nosso meio. Ainda mais aqui no Rio Grande do Sul, orgulhoso por ser a “Europa do Brasil” onde milhares de pessoas levantam documentos de seus tataravós para provar que são italianos e assim ter dupla cidadania. É impressionante como tantos anos de história e cultura fundem-se em meros cinco segundos. A herança cultural e histórica produzida desde tempos longínquos mostram-se atuantes e materializados em encontros aparentemente inocentes, como um jogo de futebol.

Outro fato também importante de se procurar debater após esse triste episódio é identificar ou tentar definir o que é racismo no Brasil. Isso é dificultado pela confusão entre os conceitos de termos “preconceito”, “discriminação racial” e “racismo”. O professor Kabenguele Munanga os diferencia:
Há pessoas que confundem preconceito, discriminação racial e racismo. Os preconceitos, que são pré-julgamentos sobre o outro, sobre outros povos, sobre outras culturas, que são opiniões às vezes formalizadas, às vezes não formalizadas, acompanhadas de afetividade, são diferentes da discriminação. A discriminação é expressa pelos comportamentos observáveis, que podem ser censurados e até punidos pela lei, são atitudes que não são invisíveis. Outra coisa é um "derivado" que é chamado de racismo, que praticamente é todo um sistema de dominação que está por trás disso, todo um sistema de dominação sustentado por um discurso que, às vezes, tem conteúdo de uma ciência, por ser uma pseudociência, uma doutrina que existe justamente para justificar a dominação, a exploração do outro.

Alguns podem interpretar: mas e os outros não brancos no estádio?  São racistas também? Por se tratar de uma atitude ligada a emoções, ou seja, algo irracional e devido a nossa carga histórico-cultural o racismo que se solidificou em nossas mentes é difícil de ser identificado. Nós todos possuímos nossos preconceitos, todos nós o praticamos interna ou externamente, e isso perpassa qualquer etnia que compõe a nossa sociedade. Mas no racismo o fenômeno é praticado por pessoas que pertencem ao grupo étnico dominante da sociedade. Identificados com o fenótipo dominante, construído histórico e culturalmente em nosso país, esse fenômeno não é aplicável ao cidadão negro, por exemplo, que foi flagrado no estádio insultando o goleiro Aranha. Ele é apenas um reprodutor da ideologia solidificada ao longo do tempo. É um processo muito semelhante ao de reproduzir os valores que vemos na TV e na propaganda. E isso momentaneamente, não tem como ser diferente, pois viemos de uma sociedade escravagista que foi a última a dissolver-se. Mas até então não vemos outro caminho para erradicá-lo a não ser que seja através da denúncia, das políticas afirmativas e da educação continuada. Talvez agindo assim desta maneira, podemos ter a esperança de ver um dia esse problema superado pelas gerações futuras.


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