Para
a atriz Fernanda Montenegro, em entrevista no domingo (06.09.2015) a Luís
Carlos Merten do Estadão (Cad. 2, C1), a afirmação da negritude foi a causa dos
problemas de audiência da novela “Babilônia”. “O resto foi pretexto”, disse a
atriz.
O
escândalo causado pelo beijo de duas personagens femininas teria servido apenas
de cobertura, para distrair a atenção de “uma verdadeira revolução” – a grande
quantidade de personagens negros bem sucedidos, as uniões inter-raciais, o
elogio da miscigenação. “As pessoas se incomodam”, ela disse.
Se
você pensa que a televisão é um mundo que havia afastado esse aspecto
insuportável da realidade brasileira ( a presença de negros e negras), um
grande elenco negro não poderia deixar de produzir incômodo e mal-estar. O que
é mais natural para nós do que ligarmos a TV e não enxergarmos negros?
Cacá
Diegues contou o seguinte episódio em sua autobiografia: “Numa reunião para
comercial sobre shopping center, a representante do cliente me recitou longo
“briefing”. Num comercial de shopping, dizia ela, não podia aparecer dinheiro
ou exposição de preços. E sobretudo que não filmássemos nenhum negro, mesmo que
em distante figuração. Acreditei que a moça, conhecendo Quilombo, estivesse
fazendo uma piada. Mas era isso mesmo, não era permitido aparecer crioulo”.
(Vida de Cinema – antes, durante e depois do Cinema Novo. Editora Objetiva,
2014, p. 627.)
Mesmo
que em distante figuração. Ou seja, nem a representação de uma figura ao fundo,
mera presença, sem participação ou intervenção. Não. Será possível entender a
complicada cabeça do (a) brasileiro (a) sem essa negação?
Que
fantasia soberba: dinheiro, não; preços, não; pretos, também não. Trata-se, ao
que parece, de esconder o que é essencial. Vocês podem imaginar nesse ambiente
a tensão criada pelos rolezinhos, lembram-se? Negros na novela provocam, ao que
parece, a mesma tensão que os rolezinhos criavam nos shoppings e, segundo
Montenegro, acabam constrangendo a audiência.
Tornar
possível um Brasil sem preto, convenhamos, pressupõe o extremo domínio de
técnicas sofisticadas de exclusão, mas pressupõe também outras disposições e
aptidões especialíssimas. No relato feito por Diegues, como vimos, não há
nenhuma sofisticação. De regra, há, no entanto, meios mais refinados de fazer
prevalecer velhas hierarquias.
Visite
a África do Sul. Nos anos 80, os coloridos anúncios de agências de turismo
convidavam para uma visita ao país do apartheid. Mas não se falava de
apartheid, claro. Os negros desapareciam dos anúncios, que se dividiam em
imagens de grandes mamíferos e pessoas brancas em ambientes suntuosos. Quem é
capaz de apreender a dimensão grandiosa da realidade subtraída pela ideologia
do racismo?
O
movimento negro protestou, os anúncios sumiram das revistas. Mas os nossos anúncios
aqui no Brasil estavam e estão submetidos ao mesmo principio de negação da
realidade. Trata-se de uma recusa sistemática a validar a experiência social
dos negros. Afastam-na com desprezo e são muitos os truques de edição a que
recorrem para, igual ao que ocorria no apartheid, conseguir descartar a
presença da maioria e toda a imensa riqueza e diversidade de seu mundo humano.
Não
é fácil, cara, apagar a maioria, pense nisso.
Selecionar
conteúdos e imagens, personagens e figurantes, tramas, memórias, conflitos;
soterrar acontecimentos históricos e quotidianos. Sacrifícios gigantescos.
Pessoas que nunca chegarão a formular nada, nem interpretar, nem dirigir, nem
cantar, nem dançar, nem ensinar nem aprender, nem amar, nem odiar, nem
criticar, nem tomar emprestado nem emprestar, nem fazer política, nem viajar,
nem comprar, nem vender, nem ser preso sem culpa, que não serão torturadas, nem
assassinadas. Trata-se de conceber as pessoas negras de um modo absolutamente
distinto de como as pessoas brancas são concebidas.
Lembrei-me
de um conto de Gilda de Mello e Sousa em que a personagem “pôs-se a imaginar
que não existia, não existia” (A visita, 1958). Um sentimento assim poderia
provir do contato com uma realidade midiática que sistematicamente negasse nossa
existência. Frequentemente é o que ocorre.
Mas
precisamos pensar que o descarte da maioria acentua ainda deformações
monstruosas no mundo branco. Apreendem-se as pessoas negras, mas como se elas
não fossem exatamente pessoas. Elas existem, elas estão aí, mas elas não
importam. Simplesmente isso. Seja lá o que elas forem, pessoas ou coisas, elas
não importam.
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