Questão de Gênero: Tu sabes qual o perfil das mulheres vítimas de homicídio/feminicídio?




Essa é a pergunta que consta no Mapa da Violência 2015 - Homicídio de Mulheres no Brasil, onde acrescentei a nomenclatura feminicídio, devido a designação ser recente no meio jurídico brasileiro (conforme a Lei 13.104/2015), para dar assim visibilidade a essa violência de gênero específica. Entre 1980 e 2013 os quantitativos passaram de 1.353 homicídios para 4.762, um crescimento de 252,0%. Considerando o aumento da população feminina no período, o incremento das taxas foi de 111,1%.

Em relação às mulheres assassinadas, se tomarmos como ponto de partida a idade de 18 anos aos 30, a proporção sobe para 43% do total de homicídios: acima de 4 em cada 10 mulheres, foram vítimas de feminicídio cometido pelo parceiro ou ex-parceiro.

Em 2013 morreram assassinadas, proporcionalmente ao tamanho das respectivas populações, 66,7% mais meninas e mulheres negras do que brancas. Houve, nessa década, um aumento de 190,9% na vitimização de negras. Alguns estados chegam a limites absurdos de vitimização de mulheres negras, como Amapá, Paraíba, Pernambuco e Distrito Federal, em que os índices passam de 300%.

Sim, o perfil preferencial das mulheres vítimas de feminicídio no Brasil são as meninas e mulheres negras.

Recente episódio ocorrido na Marcha das Mulheres Negras em Brasília demonstra um pouco o descaso com essas vidas, quando homens brancos que se manifestavam pela volta da Ditadura, jogaram bombas e deram tiros nas mulheres negras que marchavam de forma pacífica e alegre, mas reivindicatória. Sim, os homens assassinam mulheres porque acham que elas estão fora do seu “lugar social”; mulheres negras reivindicando seus direitos? Essa não parece ser a posição esperada delas em uma sociedade machista e racista. Mulheres com comportamentos sexuais livres ou não heteronormativos são assassinadas, violentadas e estupradas.

O Mapa da Violência traz dados de acordo com os registros do SIM/Ministério da Saúde, entre 1980 e 2013, onde o País contabilizou 106.093 assassinatos de mulheres. Segundo dados da OMS, nossa taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, em 2013, nos coloca na 5ª posição internacional, entre 83 países do mundo. Só estamos melhor que El Salvador, Colômbia, Guatemala e a Federação Russa, que ostentam taxas superiores às nossas. Em relação ao Reino Unido, por exemplo, temos 48 vezes mais homicídios de mulheres.

Em Roraima a situação é ainda mais dramática, triplicando (15,3 por 100 mil) e Espírito Santo duplica (9,3 por 100 mil). Temos capitais com taxas inaceitáveis, como Vitória, Maceió, João Pessoa ou Fortaleza, com índices acima de 10 homicídios por 100 mil mulheres. E índices ainda mais absurdos em Alexânia-GO, ou Sooretama-ES, que atingem índices acima de 20 por 100 mil mulheres. Esperamos que, com base nesses dados, os governantes se debrucem sobre o problema e pensem em políticas públicas específicas para essas cidades.

Em relação à impunidade nesses casos, o Mapa da Violência fez uma série de cruzamentos onde foi possível estimar em 7.912 o número de pessoas que estão privadas de liberdade ou aguardando julgamento por Violência Doméstica. Mas, pelo Sinan, é possível verificar que foram atendidas pelo SUS, em 2014, um total de 85,9 mil meninas e mulheres vítimas de violência exercida por pais, parceiros e ex-parceiros, filhos, irmãos: agressões de tal intensidade que demandaram atendimento médico. Estima-se que 80% dos atendimentos de saúde no País são realizados pelo SUS; assim, um total estimado de 107 mil meninas e mulheres devem ter sido atendidas em todo o sistema de saúde do País, vítimas de violências doméstica. Pode-se afirmar então que temos um vácuo de aproximadamente 100 mil agressões que não constam nos dados do sistema de justiça.

Importante mencionar que isso também decorre do descaso de muitos serviços de saúde, segurança e justiça em relação ao fenômeno da violência doméstica e familiar, como se a mulher também fosse responsável de alguma forma pela violência sofrida. Esse é o aspecto que mudou pouco nas últimas décadas: a cultura machista!

Temos a Lei Maria da Penha, construída pelo esforço de muitas feministas e que iniciou com o encaminhamento pelo Cladem e Cejil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, justamente pela impunidade em um caso de tentativa de homicídio no Brasil. A Lei melhorou o acesso à justiça e os procedimentos, em especial as medidas protetivas de urgência, possibilitou prisão em flagrante e preventiva em caso de descumprimento de ordem judicial, mas ainda estamos longe de uma satisfação no atendimento prestado às mulheres em muitas instâncias.

Temos um procedimento jurídico específico e Varas de Violência que deveriam ser especializadas (mas que não contam com juízes, promotores e defensores especializados na maioria das vezes). Temos vários serviços disponíveis às mulheres atualmente, como o Disque 190, os Centros de Referência, os Núcleos em Defensorias Públicas, as Delegacias de mulheres que se ampliaram e estão melhores equipadas, o que vem em geral melhorando a situação e o atendimento, mas ainda estamos longe de romper com a cultura machista que se reflete também nesses órgãos, muitas vezes pelo descaso com o fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Finalizo dizendo que, as mulheres, embora compartilhem de uma opressão específica de gênero, encontram mais ou menos discriminações e violências dependendo de suas características individuais. A mulher pode ser branca ou negra, pobre ou rica, deficiente ou não, lésbica, bissexual ou hetero, e cada uma dessas características poderá desencadear uma discriminação específica, mas que se interseccionam gerando uma discriminação específica (discriminação interseccional [1]) que se amplia pelos diversos fatores discriminatórios em uma única mulher. Uma mulher branca poderá ter contra ela perpetrada uma violência de gênero, mas uma mulher negra poderá ter outras cargas discriminatórias que a tornam ainda mais vulnerável em nossa sociedade. As políticas públicas de prevenção e combate devem estar atentas para essas variáveis, para que possamos minimizar o genocídio da população negra, que encontra números ainda piores em relação aos jovens homens negros. E é importante que se diga que são as mulheres negras, em sua maioria, que têm seus filhos negros assassinados, o que se constitui em outra forma de violência emocional e psicológica brutal contra essas mulheres de nosso país.

Rubia Abs da Cruz é Advogada feminista, mestranda em Direitos Humanos - UniRitter Laureate International Universities e Coordenadora do CLADEM Brasil - Comitê Latino Americano e do Caribe em Defesa dos Diretos das Mulheres.

REFERÊNCIAS [1][1] A discriminação interseccional é quando existem vários motivos de discriminações que confluem simultaneamente dando lugar a uma discriminação específica, que não pode ser entendida se os distintos fatores de discriminação, não tivessem operado de maneira concorrente. Tem uma perspectiva qualitativa. AGUILAR, Gaby Oré. Discriminacion Multiple, Interseccionalidad e Igualdad Multidimencional en El Marco de los Derechos Humanos. CLADEM, Boletim Del Programa de Formacion No. 2 Ano 1, Noviembre, 2014. 55 páginas.

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