Em tempos de intolerância: o mito do brasileiro cordial



A figura do povo alegre, agregador e tolerante, geralmente atribuída ao brasileiro, é mais um daqueles mitos que tardam, mas não falham em mostrar sua verdadeira face. O termo “cordial” – imortalizado pelo historiador Sérgio Buarque de Hollanda, em Raízes do Brasil,– é comumente mal interpretado.



No caráter etimológico defendido pelo autor, não é exatamente “cortês” ou “bondoso” o que definiria o brasileiro. “Cordial” vem de coração. Ou seja, é o tipo de pessoa que se orienta de forma passional, muito mais do que pela racionalidade. E isso, na prática, pode ser bem perigoso, como temos visto com uma assombrosa constância nos últimos tempos.

A relação conflituosa entre o amor e o ódio tem levado às ruas, atitudes que desconhecem os limites do bom senso. Perdemos a vergonha da nossa vergonha e agora gritamos ao mundo a revolta generalizada contra tudo e contra todos. No debate político, importamos do futebol a rivalidade e os palavrões; das novelas, vieram os arquétipos de “mocinhos” e “vilões” e seu consequente maniqueísmo simplificador.

O problema é que, nesse caso, aquele que se diz “do lado do bem” é o mesmo que pede cadeia para adolescentes, pena de morte, justiçamento, repressão a homossexuais. É o mesmo que objetifica as mulheres, faz piadas racistas, fura a fila e “molha a mão” do guarda para se livrar de uma multa. É o tal tipo que usa anonimamente as redes sociais para destilar seu conservadorismo raivoso contra potenciais inimigos, mas, claro, colocando-se como exemplo definitivo da mais absoluta retidão moral.

Casos como o da menina de 11 anos apedrejada por seguir o Candomblé, a apresentadora negra atacada com ofensas na internet, os adesivos que colocam a primeira presidenta do país em poses sexuais vexatórias, o homem amarrado a um poste e linchado no Maranhão, as estatísticas crescentes de assassinatos de LGBTs e jovens da periferia mostram que, definitivamente, estamos longe de ser o país do respeito às diferenças.

Uma coisa é certa: caíram as máscaras até hoje tão utilizadas para esconder as formas mais perversas de preconceito e exclusão. O que resta é a face nua do autoritarismo, escancarada por um setor da sociedade que trabalha diuturnamente para golpear a democracia, conquistada a duras penas. A raiva agora exposta se revela ávida por colocar em prática seus delírios mais violentos contra grupos historicamente vulneráveis, ensinados a viver entre as paredes do medo. E não nos enganemos. Esta é uma guerra, como todas as outras, em que todos saem perdendo.

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