“Eu sou
porque nós somos”. Um dos três princípios fundamentais da RAiZ – Movimento
Cidadanista, o Ubuntu é uma ética e filosofia de origem africana que busca
entender a sociedade de uma maneira mais integral e solidária. Inseri-lo em
condições de igualdade com outros dois pilares de origem ocidental
(ecossocialismo) e indígena (teko porã), como sementes fundadoras do
partido-movimento é por um lado um reconhecimento à contribuição dos povos
africanos e afrodescendentes na construção do Brasil, e por outro lado, uma
provocação e desafio para a política brasileira na busca de outro sentido ético
mais inclusivo e fraterno.
Para
saber um pouco mais sobre as origens do Ubuntu e o sentido de pensá-lo e
praticá-lo no Brasil de hoje, entrevistamos Dennis de Oliveira, professor da
USP e integrante do coletivo Quilombação.
- O que é Ubuntu, qual sua origem e
quais contribuições traz para pensar a relação em sociedade?
Ubuntu
é uma palavra originária do idioma kibundu e não tem uma tradução exata para a
língua portuguesa. A ideia é “minha existência está conectada a existência do
outro”. Sintetiza uma concepção de humanidade típica dos povos de matriz bantu
que difere da concepção autocentrada de sujeito implícita no ideário Iluminista
e, portanto, vai além da dualidade indivíduo/coletividade expressa em vários
pensamentos ocidentais, como por exemplo, em Freud, que na obra “O mal estar da
civilização” situa um dos fatores do mal estar estrutural da condição humana na
relação entre os seres humanos que, segundo ele, são uma espécie propensa a
agressividade e, portanto, que necessita de mecanismos de controle. A filosofia
ubuntu sinaliza que as existências humanas estão interconectadas, portanto, a
condição humana é uma existência coletiva. Por isto, que as manifestações que
têm raízes nas tradições africanas sempre se organizam em “rodas” e não em
“filas” ou em uma organização espacial que aponta alguém que emite (palco) e
outro que recebe (plateia). Exemplo: rodas de capoeira, rodas de samba, rodas
de candomblé, etc.
-
Qual foi a importância dessa filosofia em processos difíceis com o fim do
apartheid na África do Sul?
O
arcebispo Desmond Tutu foi um dos maiores divulgadores da filosofia ubuntu e,
inspirado nela, defendeu os mecanismos das Comissões da Verdade e Reconciliação
logo após o fim do apartheid. Estas comissões colocavam frente a frente os
ex-algozes e agentes da repressão do regime do apartheid e suas vítimas. A
admissão e o reconhecimento do que foi feito por parte do ex-algoz em frente a
sua vítima era parte de um processo de reconexão de humanidade de ambas partes.
Podemos, grosso modo, fazer uma analogia deste processo ubuntu com a ideia do
educador brasileiro Paulo Freire quando, na obra “Pedagogia do Oprimido” afirma
que a luta do oprimido contra a opressão liberta tanto os oprimidos como os
opressores. Por que liberta os opressores? Porque estes constroem a lógica da
sua existência como opressores instrumentalizando o oprimido, negando-lhe a
humanidade. Em outras palavras, a sua existência está diretamente ligada a
“desumanização” do outro subalternizado. Terminada a relação de opressão, este
opressor ao deixar o seu lugar de opressão, passa a estabelecer uma relação de
mediação, de interconexão, de humanidade plena com o semelhante.
- Pode-se dizer que o Ubuntu está
presente na sociedade brasileira? Como se manifesta?
Principalmente
nas expressões de tradição africana, como já citei, as rodas de capoeira,
samba, candomblé, as três rodas de resistência negra brasileira. Mas podemos
fazer pontes com pensamentos progressistas brasileiros, como o que eu citei de
Paulo Freire. Além disto, se nós observamos os mecanismos informais de
organização da população da periferia, veremos a presença desta filosofia. As
comunidades periféricas tem uma lógica organizativa muito interessante, em
geral lideradas por mulheres, expressando-se em espaços informais como os
encontros familiares, de amigos, organização de eventos, como festas
comunitárias, beneficentes, eventos esportivos, além dos engajamentos solidários
para com outras pessoas que, carentes de políticas públicas, necessitam de
auxílio, como mutirões para reformas da casa, idas ao hospital para
emergências, cuidar de crianças e até lutar por melhorias no posto de saúde, na
escola, etc. Independente da cor da pele, a periferia brasileira está permeada
pela herança africana.
- Durante o seminário da Raiz você
mencionou que o Ubuntu é incompatível com uma sociedade competitiva. Por quê?
Por
que uma sociedade competitiva implica em autocentramento dos sujeitos e na
visão de que o outro é sempre um adversário ou inimigo a ser vencido. A lógica
de uma sociedade competitiva é que a humanidade se constrói pela vitória sobre
o outro e não pelo compartilhamento e interconexão. As relações sociais em uma
sociedade competitiva tendem a ser instrumentais.
- Qual a importância de inserir o
Ubuntu dentro do debate político no Brasil?
O
Brasil é uma pais que dos seus 516 anos de existência, passou mais de 350 anos
de escravidão de africanos e afrodescendentes. Ou seja, de cada três anos de
existência do Brasil, dois foram de escravização de negros. E mais: a abolição
de 13 de maio de 1888 foi feita de forma a não garantir a plena inserção do
negro e negra na sociedade brasileira, com a disseminação das teorias da eugenia
e antropologia criminal no final do século XIX e início do XX, o branqueamento
da população brasileira como política de Estado que tinha como objetivo central
criar uma classe trabalhadora branca e jogar a população negra como um grande
exército de reserva de mão de obra que serviria para pressionar para baixo o
valor da mão de obra e amplificar a mais valia auferida nas relações de
exploração capitalista. Para tanto, a ideologia do racismo, a desvalorização do
ser negro e o apagamento das suas tradições e sua história foram os elementos
legitimadores deste modelo de sociedade centrada na ultraconcentração de renda
e patrimônio, de cidadania restrita e concebida como privilégio e não direito
universal e marcada pela violência como prática política central. O ubuntu
rompe com este processo de desconstrução do humanismo negro, reposicionando o
ser negro no status de qualquer outra experiência civilizatória, e também
empodera mecanismos de organização da periferia em geral desconsiderados e
desprezados pelas elites políticas. O ubuntu é uma filosofia que pode ajudar a
construir uma utopia societária baseada nas experiências do povo brasileiro.
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