Pra
que se desenhe um programa que lute contra os detalhes, as sutilezas e os
rombos do racismo o ano inteiro e não apenas montar uma palestra e um show em
novembro em sua escola, vem estas sugestões mirando o sabor das dúvidas e o
encanto dos corpos pensantes. Dialogando com as disciplinas e lugares,
questionando nossa formação e enfrentando o racismo cotidiano que pesa em nossa
história. Mas pra isso é necessário, absolutamente necessário, limparmos as
vistas e toparmos caminhar no que, por via do embrutecimento e violência
plantada em nosso pensamento há 500 anos, parece para muitos ser estranho e
mal-quisto, alienígena e feio. Em tempos atuais inclusive, pela exploração da
fé e desespero alheio, o termo “demoníaco” surge e impede estudos e posturas
diante do problema. (Dizem que a nossa crença pra gente é religião, mas a do
outro é superstição, folclore, fanatismo… Confere?)”
Primeiro:
Que tal compreender a presença negra para além dos 4 séculos de escravidão
oficial em nosso país? Sim, eles são estruturais para cada minuto de nosso
hoje, em todos os campos, mas podemos refletir sobre os povos africanos antes
de sua vinda ao que se chamou de Brasil e antes das fronteiras atuais, volta e
meia em ebulição, definidas em 1885 pelas mãos armadas dos europeus colonizadores
desconsiderando os territórios autônomos e em constante comunicação e trato.
Que
tal pensar nas ciências, na arquitetura, nos sistemas de poder e nas linguagens
desenvolvidas antes de chegarem os rifles e da sede pelo ouro e diamante? Por
exemplo, considerar a astronomia trançada à Poesia, do povo dogon, que está
onde hoje é o Mali e desvendou mapas estelares que a Nasa apenas no século 20
foi decifrar. Ou a sapiência na mineração e na metalurgia vindas do oeste
africano, que influenciaram tanto nossa história a partir das lidas em Minas
Gerais, e os fundamentais papeis dos ferreiros e caçadores. Ou pesquisar e
abordar as diferenças do cristianismo etíope, anterior ao Vaticano, ou a
geometria nas grafias e contações dos Sona, ainda hoje recitadas e escritas nas
areias de Angola. Se é sedutor e saudável chamar a música, esta grande pedagoga
e organizadora dos tempos, que tal abrir mão só um tiquinho dos nossos grandes
mestres, os tambores, e também aguçar a orelha e o peito pras cordas e violas
africanas, milenares, ou pras mbiras e calimbas, percussivas das lâminas em
cabaças que mesclam melodia e ritmo? Há física na vibração destes sons e há
biologia na sensibilidade da construção destes instrumentos? E em que momentos
eles são tocados ou reverenciados? São ciências traçadas há muitas luas, na
elaboração de barcos, dicionários, moradias e fornos, antes dos tempos em que
povos hoje europeus se abocanhavam e se estripavam em guerras avassaladoras
como as movidas por Napoleão e Hitler, guerras que hoje a mídia graúda insiste
em carimbar apenas nas costas de orientais ou africanos e que têm pauzinhos
mexidos por multinacionais, governos ocidentais e seus cupinchas das elites dos
países que se destroça. Bem, focar nas histórias africanas antes da chegada de
portugueses e árabes, mesmo quando no oceano Índico já se tratava com chineses
e indianos, por exemplo, é só um pedaço do tanto possível e já servirá pra se
perceber que a história não começa no navio-negreiro…
Mas
devemos pensar também os povos negros aqui no Brasil depois da falsa abolição
(aliás os espinhos e abandonos deste longo 14 de maio, tão pesado, não será
eterno porque não deixaremos). Marcados pelo escravismo e criando rumos de
liberdade como se fundaram os bairros de preto em sua cidade e quais foram seus
desafios? Como lidaram com o ambiente e a topografia de sua região? Como
ocorriam as migrações internas e como a especulação imobiliária, essa forca
ainda contemporânea, foi enfrentada? Em geral proibidos pela segregação na
porta de empregos, clubes e elevadores, como se organizaram e em que ofícios
martelaram para criar suas famílias os clubes negros que mesclavam bailes,
turmas de letramento e passeatas pela circulação livre em ruas e praças
segregadas? Eis aqui princípios da Educacão Popular? E as Confrarias e
Irmandades de negros criadas para garantir enterros dignos aos seus
congregados, como se relacionavam com a Santa Sé e as cúrias estas irmandades
cansadas de ver seus cadáveres jogados às valas? Como se realizaram campeonatos
de futebol por quem era proibido de jogar nos times grandes e como se
organizavam estas equipes? Como gente preta narrou ou bolou programas, engenhou
equipamentos, lotou auditórios e limpou os palcos das rádios, fundamentais pra
entendermos o século 20, principalmente nas raias urbanas? O mesmo acontecido
com os transportes aquáticos ou os trens: além de limpadores de bitolas e
trilhos, como as associações ferroviárias foram importantes ao povo preto? Isso
orna com a geografia a se ensinar? Há economia, circulação de materiais e
ideias no vento que acaricia pela janela do trem um rosto marcado pela guerra
silenciosa e às vezes não declarada de cada dia? Onde está a química?
Além
de umedecer a gramática e nutrir o vocabulário das falas e parágrafos
brasileiros, o que já é notório, quais elementos sintáticos e morfológicos
brindamos em nossas frases e que vêm das línguas quimbundo e quicongo, do
pessoal que embarcou forçado em Luanda e Cabinda há séculos? No jeito de bolar
o plural de artigos e substantivos e de lidar com ditongos, como nossas rezas,
receitas e cantorias bebem a fonte destas línguas? Aliás, serão línguas,
dialetos ou o quê? Por quê? Ainda na praia da língua, da literatura, é
lastimável a ausência de canetas e autorias negras em nossos programas,
editoras, livrarias… Creio que isso tu já percebeu: se não for famoso ou não
couber no estereótipo, está fora da assinatura que se exporta. Veja aí qual o
prisma e a cor dos passos dos personagens que pintaram nos nossos cadernos?
História, poesia, filosofia… Cabe aqui? Podem, melhor do que considerados
isolados, dialogar com os chamados clássicos (aliás, quem alçou os clássicos a
esta categoria?) sobre temas cortantes da nossa vida como o desespero, o amor,
a saudade, a luta, o susto e a fé? E se filosofia é debate amplo que mais e
mais se esparrama: como o Tempo, a Morte, a Ética, a Saude e a Política, por
exemplo, são aprofundados por filósofos africanos ou por escritoras negras das
Américas? Isso se entrosa com os currículos e pautas pra tua classe?
E
pela América Latina e pelos subúrbios dos Estados Unidos, como reverberou nas
comunidades negras a luta pelas independências africanas entre as décadas de 50
e 70 do século passado? Em tempo de ditaduras vibrou Consciência Negra? O que
temos de distinto e em comum no cotidiano caseiro, nas praias, nas cadeiras
universitárias entre tantos países onde ocorreu a diáspora africana? Ah… Ela
está viva hoje, seja nos bairros de Lisboa, Londres e Paris ou nas praças de
cá, com senegaleses, angolanos e haitianos. Por que saem? Como se constroem
suas economias por lá e por aqui?
Carece
também até mesmo sair do tripé Rio-Bahia e São Paulo, questionando como lá pros
anos 30 e 40 se consolidaram como símbolos da cultura nacional muito do que
hoje é cartão postal e chavão quando se cita a “cultura negra”. Mas o que será
esta cultura, quais seriam seus elementos fundamentais e como ela se movimenta
na contradição básica de nossa história: a negritude ser central em nosso país
desde o princípio e, ao mesmo tempo, ser escanteada e pulsante nas bordas. Nas
beiradas para onde foi e ainda é tão relegada ou então enfiada entre holofotes,
estereótipos e entretenimento descartável.
São
coisas da nossa formação, orquestrada de cima pra baixo entre o terror e o
desejo. E de baixo pra cima abrindo vãos, contemplando momentos e espaços de
vitalidade e autonomia, questionando o que é imposto como “correto e direito”.
Aliás isso voga agora em nosso nariz. A luta pela sobrevivência e contra a
tortura não se limita aos séculos passados: diante do escancarado genocídio e
encarceramento de nossa juventude, as Mães de Maio hoje pelejando contra o
assassinato de nossos filhos têm tudo a ver com as Mães de Ontem, com as
irmandades já citadas ou com quem tramou mocambos e quilombos para viver livre,
fossem urbanos em intensa comunicação com seus algozes ou em guerra declarada,
cultivando suas matemáticas nas hortas, suas meteorologias em fuga ou suas
preces e sorrisos em roda.
Percebemos
porém que mais do que preencher programas é necessária uma reflexão pedagógica
e didática sobre as maneiras de se partilhar e contemplar essas dúvidas e
saberes, sem desconsiderar a dadivosa abstração e a crescença individual, mas
de acordo com as intenções e patamares de sua turma no ensino fundamental ou no
médio para também envolver os poros na ciência e agir em coletivo. Trançando as
disciplinas (aliás “interdisciplinaridade” é marca destes saberes, por precisão
e gosto) e, enfim, praticando e aprofundando o que até já se tornou lei
federal, a 10639/03, que depois foi ampliada para contemplar também a fonte, a
necessidade e a grandeza dos muitos povos indígenas.
Vamos?
Para além de novembro, por favor.
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