O que leva alguém a votar em Bolsonaro & Cia., e o que isto significa?


Pelo menos, se o homem não se tornou mais sanguinário com a civilização, ficou com certeza sanguinário de modo pior, mais ignóbil que antes. Outrora, ele via justiça no massacre e destruía, de consciência tranquila, quem julgasse necessário; hoje, embora consideremos o derramamento de sangue uma ignomínia, assim mesmo ocupamo-nos com essa ignomínia, e mais ainda que outrora. O que é pior? Decidi vós mesmos. DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Memórias do subsolo.

Responder satisfatoriamente à indagação proposta pelo título não é uma tarefa simples, tampouco acarreta em uma visão otimista com relação à política profissional brasileira. Negligenciei propositalmente, por certo tempo, em escrever sobre um perfil tão nefasto, patético e risível como este, até mesmo por pensar que seria demasiada atenção dispensada a algo relativamente insignificante (como, acertadamente, foi o cômico movimento O sul é o meu país). Não que tenha ocorrido algum acréscimo significativo à visibilidade de Bolsonaro, mas o que se pretende abordar, ainda que seja desafiador, é a abstrusa subjetividade que leva alguém a cogitar, a eleger e/ou ser eleito com base em discursos como os de Jair Bolsonaro & Cia. Desta forma, quaisquer comentários, assim como a polêmica suscitada através deste texto, só serão plausíveis na medida em que forem assimiladas concepções aqui explanadas.

Infelizmente, ainda é necessário ressaltar que este debate sequer devia existir, assim como este texto; afinal, é inconcebível que um regime político incipiente, como é o caso da democracia brasileira, tenha entre seus quadros político-partidários pessoas que representam um perigo letal às instituições, bem como para com os próprios cidadãos. Causa sincera comoção e admiração que discursos de ódio e intolerância ganhem tanta repercussão e, o que é pior, que sejam representados nas arenas políticas (tanto mais por alguém que defende atrocidades, tais como as cometidas ao longo de duas décadas de autoritarismo civil-militar). Não se trata apenas de Bolsonaro em si, mas de quem e o quê ele representa.

O cenário é tal que, mesmo no ambiente acadêmico-especializado da Ciência Política, e mais ainda no clássico pessimismo da visão culturalista, encontram-se facilmente terminologias técnicas adjetivadas de “crise”. Em termos práticos, o que chega ao cidadão comum, leigo e distante das esferas de poder, é que há uma macilenta crise generalizada, sendo esta responsável pela corrosão das instituições e da política brasileira; ou, pelo menos, é esta a premissa dos discursos propagados. É verídico que o índice de confiança institucional dos brasileiros tende a ser tanto pior quanto maior a proximidade com as arenas político-profissionais, cabendo uma das piores colocações (desconfiança) aos partidos políticos. Eis a gênese da “crise”: não há legitimação e representação, por um lado e, de outro, ausenta-se exponencialmente a confiança e a reciprocidade (as bases da democracia enquanto espelho da sociedade). Em outras palavras, o povo não se vê representado através dos partidos, assim como não crê na política profissional brasileira (e não sem motivos, é claro).

Este cenário de pouca confiança institucional (e também social) forma um campo fértil para semear discursos de crise. Por quê?

Pelo simples fato de apresentar um discurso que já está presente na subjetividade dos brasileiros – encontra ecos no “tradicionalmente concebido”. Por exemplo, é mais fácil aceitarmos que existe uma crise que justifique “explodir o Congresso”, do que aceitarmos que há sim como aprimorar a política profissional. Neste aspecto, ressalvadas as devidas proporções, o que é permitido compreender, através de uma possível comparação entre o “efeito Bolsonaro” e os regimes totalitários da década de 1930/1940? Fora a fertilidade que discursos de ódio, intolerância e crise generalizada possuem, ecoando no âmago de uma sociedade descontente e incrédula, também percebe-se a necessidade vital de, uma vez formulado o problema, apresentar a solução: o “mito” salvador pátria.

Este é um fator fundamental para a compreensão do sucesso, ao menos midiático, de candidatos como Jair Bolsonaro. Ele (e tantos outros, assim como seus assessores) sabe qual é o “ponto fraco” dos brasileiros – é por isso que adjunto a este abjeto jargão de “crise” (o problema), existe a vital necessidade de um líder “sério, honesto, firme” que conduza a nação ao El Dorado (a solução). Mas esta relação não se esgota aqui, pois assim como em todos os discursos extremistas, especialmente os movidos à amálgama de ignorância e ódio, é deveras essencial encontrar um culpado. Temos, então, a tríade “problema – culpado – solução” (cada uma destas terminologias poderia ser infinitamente preenchida com diversos nomes, mas isto exigiria tamanha criatividade e dispêndio desnecessário de laudas e tempo que, além ser um exercício à memória, poderá o leitor amigo entreter-se por longas horas).

O fator primordial consiste no fato de que a relação causa-efeito (problema/solução) pode ser assimilada por qualquer pessoa, independente da classe social, da idade ou do local, pois é fácil; afinal, todo problema exige uma solução. Permitamo-nos uma analogia: para compreender as longas horas de êxtase que uma criança obtém através de um simples brinquedo, deve-se pensar e agir do mesmo modo que ela; para compreender Bolsonaro e seus asseclas, deve-se focar tanto em suas limitadas capacidades quanto nas de seus representados, o que exige uma simplicidade de raciocínio extremamente infantil que, aliás, é bem caro ao cotidiano adulto. Ademais, o que significa este lúgubre comportamento de idolatrar Bolsonaro, representado por jargões como “este é o mito!”, “ele é o único honesto”, “messias”, dentre outras tantas verborragias anencéfalas? Significa analfabetismo político e falta de bom senso, além de milhares de anos de evolução humana jogados fora…

Mas onde se propagam estes discursos?

Propositalmente, são através das redes sociais e de aplicativos como o WhatsApp, no qual se conquista pela simplicidade e superficialidade da comunicação, ou, o que dá no mesmo, pela facilidade e agilidade necessárias à (in)compreensão da mensagem. São nestes locais que os discursos prontos, fechados e intolerantes se propagam com inenarrável facilidade. Dificilmente a caríssima (sim, o superlativo se justifica) construção do conhecimento pode ser resumida e verificável através de virtuais abstrações simplistas como as propagadas por este grupo (por exemplo: para alguns, uma piadinha boba; para outros, um preconceito velado). Refletir acuradamente é bem mais difícil do que agir espontaneamente, sem pensar, uma vez que isto exige investimento, tempo e rigor (deve ser por isto que o bom soldado, pregado por Bolsonaro & Cia., deve apenas obedecer, jamais contestar – eis o nonsense estereotipado).

Não é por acaso que o reflexo deste cenário pode ser magistralmente resumido no adágio do Mestre Povo: “nunca se deve discutir com um idiota, pois o mesmo lhe rebaixará ao seu nível e lhe ‘vencerá’ por meio de sua idiotice”, afinal, ele está em seu terreno – no qual existem mitos, messias, salvadores-da-pátria e juízes que defendem um execrável auxílio-moradia, pois seu titânico salário ainda é insuficiente (não generalizemos, todavia, no abrandamento da questão, pois alguns asseclas mais revoltados vociferam “morte aos juízes!”) Este comportamento explica o porquê de uma simples frase/imagem ser capaz de condenar e suscitar ódio, por exemplo, ao Programa Bolsa Família; mas estranhamente também é a chave-interpretativa do porquê não conseguirmos resumir uma explicação que mostre, efetivamente, a importância desta política de Estado em uma simples frase/imagem. Não há como ser tão simplista e irracional, fora o fato de que este público é sempre irracionalmente seletivo: só veem aquilo que lhes soa aprazível e cômodo.

Visivelmente, grande parte do virtual eleitor de Bolsonaro é relativamente jovem, sendo que destes, muitos possuem voto ainda facultativo. Mas há, também, um perfil de eleitor socialmente reacionário e humanamente desumano, apoiador de medidas extremas, na qual a pior é a execução (idolatrada por esta ascosa turba). Este é o perfil de alguém que possui um ódio generalizado e não sabe em quem ou no quê dará vazão ao mesmo. Assim como a dor indica algo errado no corpo, servindo muitas vezes de alerta, este perfil sociopolítico também cumpre semelhante função social. Por isto que afirmo: Bolsonaro, em si mesmo, não é motivo de preocupação alguma; o que preocupa é quem e o quê ele representa. Existe apenas um Jair Bolsonaro, mas cidadãos com este mesmo perfil existem aos milhares – e são eles que compõem o verdadeiro motivo de consternação.

É bom ressaltar que o diálogo com o perfil acima descrito é pífio. No entanto, não podemos generalizar (pois se assim agíssemos, recairíamos em um colossal erro), mas em sua grande maioria, este eleitor é tão estulto quanto o seu representante eleito. Assim como todo profundo e obtuso ignorante, consciente de sua falta de conhecimento e poder argumentativo, este público utiliza-se, para defender o seu ponto de vista, de cômicas justificativas que recaem em ilusórias experiências, tais como “no meu tempo não era assim”, ou nostalgias não-vividas do estilo “meu pai disse que não era assim”, ou até mesmo fantasias virtuais como “salvemos o Brasil dos esquerdistas” ou dos “comunistas que comem criancinhas” (aliás, será que este perfil sabe o que é o comunismo? Será que leram o básico e complexo Manifesto do Partido Comunista? Certamente não). Como diálogo não há, e mesmo se houvesse não haveria muito a ser debatido, este eleitor/eleito tende, quando confrontado, a reagir violentamente (tanto fisicamente quanto simbolicamente), fechando-se em sua colossal arrogância – e nisto consiste toda a sua argumentação!

Quanto aos idiotas, os deixemos com Horácio Quiroga, que em A galinha degolada demonstrou o poder nocivo destes “inofensivos seres”; quanto ao seu papel político, empreguemos a expressão de Brecht: são “analfabetos políticos” (sem jamais esquecer que estes votam, e, votando ou não, servem como infalível massa de manobra). Aliás, é importante ressaltar esse ponto. Este eleitor/cidadão desinformado, com a característica picardia de homem hobbesiano em estado de natureza (ou selvagem), serve como um atuante político responsável pelo suporte de regimes extremistas, além de diversos autoritarismos e golpes de Estado.

No Brasil não é diferente, pois temos lá nossas tropicais insanidades, muitas vezes fomentadas conscientemente por uma viperina elite tupiniquim que lhes brinda com patos amarelos e lhes esvaziam as panelas, para delas se servirem como instrumentos para variadas sonatas e sinfonias (aliás, sejamos mais realistas, pois eles(as) gostam mesmo é de uma “vai malandra”, afinal, por mais moralistas que sejam, o predomínio do primitivo instinto sexual sempre fornece alguma exceção à monogamia).

Defender medidas enérgicas contra a criminalidade, por exemplo, é essencial, independentemente da ideologia política (mas não sejamos, todavia, deterministas míopes ou imediatistas, como é este público que exalta em sanguinária verborragia jargões do estilo “redução da maioridade penal” e “execução”). Neste quesito, é papel constitucional do Estado reinserir o cidadão, após pena cumprida, na sociedade. Mas sabe-se ser falho este processo, e é desta falha nas instituições que é retirado o âmago do discurso que forma diversas plataformas políticas; assim como leva alguém a votar em Bolsonaro. A violência, criminalidade, ineficiência, morosidade, descrença, pessimismo, crise generalizada, etc., são fatores chaves para compreender a ascensão de discursos de ódio. É por meio destes comportamentos, jamais propositivos, ou melhor, beneficamente propositivos, que tais afetados representantes “da moral e dos bons costumes” fazem o seu desesperado apelo à antiga “ordem” estabelecida. Mas como fazem isto? Por meio do apelo tradicional (vide, por exemplo, a agenda da bancada evangélica).

Eis o porquê da viável e necessária parceira com instituições tradicionais, tais como as representações religiosas (geralmente reacionárias em termos sociais). Inclusive, este ponto é crucial, pois sabendo que os culpados são os “esquerdistas” (que em suas limitadas visões são homogêneos e unidos), é natural que concebam qualquer viés social como uma premissa “esquerdista” e, por isto, sem valor. Como resolver mais este paradoxal contratempo? Pode-se supor que, dentre as alternativas cogitadas por este público, esteja o desmantelamento do Estado, tornando-o mínimo e entregando-o à acumulação de capital financeiro (permanece, entretanto, a dubiedade: será que eles seriam capazes administrar esta selvageria proposta ou serviriam apenas como meros instrumentos de administração – os vulgos testas-de-ferro?).

Não podemos menosprezar o poder corrosivo que essas pessoas disseminam em meio à sociedade, pois basta analisar o exemplo dos Estados Unidos, Argentina e, também, o caso singular do Brasil e do Paraguai. A atual gestão política destes países demonstra que há, de fato, certo poder nos delírios destas pessoas, sendo que as mesmas são capazes de levar muitos oportunistas e/ou demagogos ao poder. Em outras palavras, elas são usadas, sem assim o saberem, por aqueles que verdadeiramente possuem capacidade de transformar este ódio generalizado em votos válidos, o que não é o caso de um simples Bolsonaro. Maquiavel dizia que deveríamos aprender com a História, e que esta é melhor professora. Então exercitemos: para quem diga que políticos ou governos são todos iguais (como é o caso dos eleitores de Bolsonaro), questiona-se: acaso não mudou nada, não importa se para melhor ou pior, entre a gestão de Rousseff e de Temer? É claro que mudou! Políticos não são todos iguais…

Aliás, suponhamos um exemplo hipotético deste comportamento irracional. Se Lula, o “culpado de todos os males” na versão dos asseclas de Bolsonaro & Cia., viesse a óbito neste exato momento, será que este ódio dissipar-se-ia? É bem provável que não. Nesse caso, este mesmo ódio seria somente transferido para outra pessoa, ou grupo de pessoas; afinal, ele é babilônico. Por falar nisto, soa bem interessante o fato de que sem uma liderança representativa da esquerda, Bolsonaro também entra em ostracismo, justamente por não ter a quem opor-se (ora, uma vez unidos culpado e problema em uma só pessoa, e esta é eliminada, também elimina-se a necessidade de uma solução). E, bem sabendo desta relação política, as alas verdadeiramente organizadas e com potencial eleitoral (PSDB e PMDB), garantem expressividade neste cenário.

O que significa, em uma visão racional e branda, votar em Bolsonaro?

Significa uma ânsia e um descontentamento desesperado, junto ao clamor por mudanças reais e efetivas. Até aqui, tudo bem, mas a questão é em quem é depositada esta fé, assim como nos meios utilizados para tal apoteose. Além da mais sincera comiseração que despertam, estas pessoas necessitam, desesperadamente, tomarem consciência do mal que fazem não apenas para si, mas para todos os brasileiros, ou melhor, para todos nós, humanos. Ser um cidadão consciente de seu potencial ou um mero “eleitor de Bolsonaro & Cia”, o que é melhor? Decidi vós mesmos. (Por Marconi Severo*, no Pragmatismo Político).

* Marconi Severo é Cientista Social & Político e colaborou para Pragmatismo Político.

Jair Bolsonaro. (Foto: Reprodução/ Pragmatismo Político).

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