Eis
um fato que deveria ser conhecido por todos os que debatem o aborto: não há
relação direta entre sua legalidade e sua incidência. Em outras palavras,
proibir o aborto não detém sua prática; só o torna mais perigoso.
O debate sobre o aborto é apresentado como um conflito entre direitos dos
embriões e direitos das mulheres. Reforce um – ambos os lados parecem às vezes
concordar –, e você suprime o outro. Mas, uma vez que você compreenda que
legalizar os direitos reprodutivos das mulheres não aumenta a incidência de
abortos induzidos, resta apenas uma questão a ser debatida. Estes abortos devem
ser legais e seguros ou ilegais e arriscados? Pergunta difícil…
Pode
não haver relações causais entre direitos reprodutivos e incidência do aborto;
mas há, sim, uma forte correlação: uma correlação inversa. Como afirma pesquisa
publicada na revista Lancet, a mais recente sobre tendências e taxas globais,
“A taxa de aborto é mais baixa … onde mais mulheres vivem sob leis liberais sobre
o aborto”.
Por
quê? Porque leis que restringem o aborto tendem a prevalecer em lugares onde é
difícil de ter acesso à contracepção e à educação sexual abrangente, e nos
quais sexo e gravidez fora do casamento são considerados uma maldição. Acontece
que os jovens fazem sexo, não importa o que digam os mais velhos. Sempre
fizeram e sempre farão. Quem tem menos informação e menor acesso a métodos
contraceptivos muito provavelmente será mais suscetível a gravidez indesejada.
E há maior incentivo para interromper gravidez do que uma cultura em que a
reprodução fora do casamento é considerada pecado mortal?
Quantos
séculos mais de sofrimento, mutilação e mortalidade serão necessários antes de
compreendermos que as mulheres – jovens ou de meia idade, dentro ou fora do
casamento – que não desejam um filho podem ir até extremos para por fim a uma
gravidez indesejada? Quanta evidência precisamos mais de que, na ausência de
procedimentos seguros, legais, serão utilizados instrumentos cirúrgicos
sofisticados, como cabides de arame, agulhas de tricô, água sanitária e
terebintina? Quantos mais ventres perfurados e rompimentos de útero serão
necessários para reconhecermos que proibição e persuasão moral não irão
derrotar a necessidade das mulheres de possuir suas vidas?
A
mais recente meta-análise sobre tendências globais, publicada em 2012,
descobriu que a taxa de abortos, após forte declínio entre 1995 e 2003, pouco
mudou nos cinco anos seguintes. Mas a proporção dos abortos inseguros (o que,
genericamente, significa ilegais), aumentou de 44% para 49%.
A
maior parte dessa mudança deveu-se ao forte aumento dos abortos inseguros no
oeste da
Ásia (o que inclui Oriente Médio), onde ressurge o conservadorismo
islâmico. Nas regiões em que a doutrina cristã tem maior influência na
legislação – oeste e centro da África e América Central e do Sul – não houve
aumento. Mas isso somente porque a proporção de abortos ilegais e inseguros já
chegou a 100%.
Quanto
às taxas globais de aborto induzido, os números contam uma história
interessante. A Europa Ocidental tem a taxa mais baixa de interrupção da
gravidez: 12 anuais para cada 1000 mulheres em idade reprodutiva. A América do
Norte, mais religiosa, aborta 19 embriões para cada 1000 mulheres. Na América
do Sul, onde (quando dados eram coletados) a prática era banida em todo lugar,
a taxa era de 32. No Leste da África, onde leis ferozes e imposições religiosas
poderiam – segundo teoria conservadora – ter exterminado a prática há muito
tempo, era de 38.
O
estranho valor discrepante está na Europa Oriental, onde se encontram as taxas
de aborto mais altas do mundo. Sob o comunismo, o aborto era a única forma
acessível de controle da natalidade com ajuda médica. A taxa caiu entre 1990 e
1995, à medida em que a contracepção ficou mais acessível, mas ainda há longo
caminho a percorrer.
Mas
de que servem os fatos? Nos estados republicanos dos EUA, os legisladores têm
aprovado leis que tornam impossível gerir clínicas de aborto, ao mesmo tempo em
que negam educação sexual efetiva às crianças. No Texas, graças a novas normas
restritivas, mais da metade das clínicas fecharam desde 2013. Mas as mulheres
ainda são obrigadas a visitá-las três vezes, antes de receber tratamento: em
alguns casos, isso significa viajar mais de 1.500 quilômetros. Não por
coincidência, 7% daquelas que buscam ajuda médica já tentaram suas próprias
soluções.
A
única razão pela qual isso não causou uma epidemia de trauma abdominal é a
disponibilidade ampla de drogas abortivas (embora com venda não autorizada)
tais como misoprostol [no Brasil, Cytotec] e mifepristone. Elas são inseguras
quando usadas sem indicação profissional, mas não tão arriscadas como objetos
perfurantes e soluções químicas domésticas.
Em
junho, a Suprema Corte dos EUA irá julgar a constitucionalidade do ultimo
atentado do Texas contra a interrupção legal da gravidez, a norma conhecida
como HB2. Se o estado do Texas vencer, isso significa, de fato, o fim da
decisão Roe versus Wade, que julgou o aborto um direito fundamental nos Estados
Unidos.
Na
Irlanda do Norte, a nova primeira ministra, Arlene Foster, que acaba de
assumir, assegurou que a lei sobre aborto, de 1967, que incide sobre o resto do
Reino Unido, não se aplicará a seu país. As mulheres, lá, continuarão a comprar
drogas (e correr o risco de tê-las confiscadas) ou viajar para a Inglaterra, ao
custo de despesa e trauma. Esqueça a sentença de um juiz da Suprema Corte: “não
há evidência diante desta corte de que a lei na Irlanda do Norte tenha
resultado em qualquer redução do número de abortos”. Aquece o coração ver fundamentalistas
protestantes e católicos pondo de lado as diferenças para garantir que os
corpos das mulheres permaneçam como propriedade do Estado.
Como
eles, considero a vida preciosa. Como eles, quero ver a redução do número de
abortos.
De modo que clamo aos estados para fazer o oposto do que prescrevem.
Se você deseja menos abortos induzidos, deve apoiar uma educação que encoraje
as crianças a falar sobre sexo sem embaraço ou segredo; contracepção livremente
disponível para todos; e acabar com o estigma em torno de sexo e gravidez fora
do casamento.
Os
religiosos conservadores que se opõem a essas medidas têm sangue nas mãos. São
responsáveis pelas altas taxas de aborto. São responsáveis por lesões e morte
de mulheres. E suas faces nem coram ao falar da santidade da vida.